Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.
Dante Alighieri 


O Percurso
por solo
pantanoso
além do rastro
a força sugada
em cada passo
inscrito
na carne indecisa
entre firmeza
e liquidez

Aposto na existência
múltipla
A mesma trajetória
ora rútila beira mar
ora selva escura

lançado
aos leões

(embora a semente
seja promessa
em silêncio)

não lia-se
rogo ou súplica
em seus olhos

enlia-se
imagem e ritmo
de tal maneira
que vigorosos caninos
não desmembrariam-nos
da palavra poética

ao afirmar fé
na poesia
o coração
torna-se carne
indigesta
à devoração

Colhidos
os signos lacerados
que traduzem
os primeiros passos
na orfandade

Reinscrevi-os na carne
Varri folhas mortas
acumuladas sobre
o túmulo
paterno

Acompanhei o sujeito poético
pela dolorosa travessia
até o momento (ou poema)
que a metáfora
do unicórnio
indicou o lugar
na poesia
onde o sangue
perde a textura

Do livro esvaiu-se
a transcendência
fez-se tátil
apenas
e só
sombra
percorrendo
o trajeto: 
bojo
de um apartamento
via quatro andares
de queda livre
ao chão.



La terre est bleue comme une orange
Paul Éluard


Frutas cítricas não sussurram
sua existência aos sentidos
Vidraças do silêncio partem-se
O cio tem cheiro de urina

Laranjas clamam pelas chamas
Poesia não apazigua
o inferno com cores frias

Sugar o sumo faz soar
os livres acordes do gozo
Magma sonoro reinventa
o ritmo da alma e dos ossos
Belo e dolorido jazz
Crepúsculo de cores vivas
A agonia eleita musa

Sede insólita do sumo
Cega ao raciocínio lógico
Lê a efêmera sintaxe:
Corpo faz-se percurso líquido
As águas movem-se ao som
línguas navegam intuitivas

O fruto oculta os tons
Evolui do rumor ao grito

Sol a pino
calcina as retinas
Legião de anjos
rilkeanos ateiam
sua presença contra
pálpebras impelidas
a semicerrar-se
O ápice é a cegueira
pelo excesso de luz

Rumo à iluminação
não há placas
beirando a estrada
que fosforeçam sob
o brilho dos teus olhos

Incandescente são as chagas
E aceso o desejo de chegar





Burt Glinn. USA, New York City, 1959. Jack kerouac reads at Seven Arts Cafe.



Movimenta-se pelos extremos
Tornozelos arranhados pelos
ramos que margeiam a estrada

Quem acolhe no coração as
metáforas da saudade sempre
dirá é cedo para partir

Fábulas sobre a solidão
e como o asfalto corrói
deixando os pés em carne viva
São pobres relíquias de família

Jack kerouac recita haikus
em tua cabeceira o jovem
Allen acena de um navio

Negas o cais como signo fixo
Colhes na tessitura poética
a inquietude das imagens

Lestes os livros da lista negra
Leopoldo María Panero

Primeira urina da manhã 
colhida para exames 
laboratoriais

A análise estrutural
quantifica elementos
constitutivos compara-os 
com padrões ideais 
Investiga a presença
insólita vestígio
de enfermidade

Níveis de normalidade
não são espelho
para a poesia
A metáfora dos poetas
denuncia a doença
de toda uma época
passada ou futura

A urina é signo
amarelo esmaecido
colore a lágrima
cristalina

Nos versos de Garcia Lorca
Nova Iorque é uma multidão
que vomita e urina

Con paso extremo
flujo indócil
Leopoldo María Panero
orina desde las calles
hasta los pies de su madre

Hay líquidos humanos -
sangre semen
vomito orina
menstruo - 
componiendo dibujos
en las paredes
de los oscuros
manicomios

Tras las manchas
puedes imaginar
imágenes de animales
o otras formas
como en las nubes 

Paisagem urbana
vidraças espelham

o céu
aves

arremessam-se 
contra
Acaso eu sussurrasse 
na superfície da tua
pele as palavras:

pássaro inacabado.

Pensarias em imagens
de aves mutiladas. 
Formas em progresso
feito um feto falho,
promessa amorfa.

Acaso o sussurro
carregasse o signo:

pássaro inacabado.

Cogitarias a crueldade
divina?
E a dolorosa doçura
do amor?
Nan Goldin, Greer and Robert on the Bed (1982), New York City, USA.

Efêmero traduz
a impermanência

Vejo o corpo

da palavra
esfumar-se
como incenso

Admiro o ritmo
das marés
Meus amigos
vivem em si
o conflito
inferno
paraíso

Porque resta
do beijo um eco
mentolado
E as feições de gozo
desfazem-se sob
o chiaroscuro 
do cigarro

Sobre a aparente
leveza do passageiro
o efêmero
impõe o peso
do seu signo

duro destino
de Édipo


Imagem: Julian Wasser. Marcel Duchamp, fountain 1963.


Odes ao cu

escritas com esferográfica
em banheiros públicos

Linguagem hieróglifa

inscreve desenhos 
pornográficos
no avesso das portas
e pelas paredes

Em frente à fonte

de Duchamp
um homem chupa
Extrema ternura
nas palavras: lábios
de veludo

O messias esfarrapado

sugere que a ruptura
inicia-se na realidade
clandestina

Os signos da poesia

não são sujos
como nos discursos
atrozes que dissimulam
crimes através
de artifícios linguísticos
do tipo:

fogo amigo