Um estudo 
para o estômago 
do poema

Lume imóvel:

saudade 
corola
lâmpada elétrica
vagina líquida
inseto fixado por um alfinete
cadáver de olhos abertos
palavra lunar
transe xamã




Em uma certidão de óbito
informa-se o óbvio:

sexo feminino
idade quarenta e cinco
insuficiência respiratória
metástase pulmonar
câncer de mama

Leio nos olhos dos anjos:
ânsias de vômito pela quimio
Esperanças de cura
calcinando os pássaros
A voz mansa falando 
da morte como descanso

Posso a meu modo
consolar teus órfãos:
Gregory pediu
para ser sepultado 
ao lado de Shelley na Itália

Debaixo do céu romano
desabam pesadas pálpebras
sobre os poetas

O poema inscrito
na lápide
torna-a menos inexorável
(impossível sem a poesia)


Consola contemplar
a lua estranha dos olhos

Entranha-se a memória 

do antigo naufrágio
Única permanência sob 
as águas de Heráclito

Afogados firmam o pacto

de narrar aos vivos
as violentas visões submarinas

Leremos a vigorosa prosa poética

e lançaremos ao mar os ossos
do nosso grande amor



Em um ensaio sobre Sade
leu os símbolos morais
da personagem seviciada

Sirva-me outra dose
diversas vezes repetira
A pele branca com ideograma
talvez ouça que a alma oscila
entre tesão náusea ódio
ao assistir Saló de Pasolini

Urge meditar uma maneira
menos ingênua de insurgir-se

No bolso o maço intacto de cigarros
porque ninguém interrompe
a solitária leitura dizendo:

a poesia é comunhão




Suavidade do animal
saciando a sede

Sem ferir o silêncio
Sinto entre os dedos

o fluxo

Delicado movimento
não desfigura o espelho d'água
Narciso pode contemplar-se
até a morte

A sede do animal:

submerso nos negros ramos
do corpo colho o rumor
Compreendo-o doloroso uivo



Quem perguntará 
pelo próximo trem
Se consultas os extáticos
ponteiros da morte?

Que informação oferecer
aos olhos medrosos
que interrogam
em busca de abrigo
se teu relógio de pulso
medra horas inabitáveis?

O silêncio de bailarina
todo sangue e suor para 
executar impecáveis 
os movimentos
Despem-nos de ilusões

Lança-nos à lucidez dos ossos
Imensa nuvem levita

Prédios de quatro andares 
e telhados miram o céu castanho

Movo-me: mínima presença

Precipita-se a primeira gota
explode em minha pele

Kerouac saberia-se abençoado
Fala através de fábulas
Idioma mágico do deus cavalo

Falo gigante aponta o poente

A promessa de cavalgar
divindades no paraíso
Seduz o coração dos fiéis
Homens e mulheres ardem
em febre desejando salvação

O tátil torna-se pão insosso
A poesia que provém do corpo
por ser indigesta aos deuses
deve-se sussurrá-la 
como um segredo

Poesia escrita sob o silêncio 
dos clandestinos e piedosamente 
oferecida aos que alimentam a dúvida
Poucos sugerem haver
uma singela porteira
por onde entra o rebanho 
com olhar sereno

Apregoam um pórtico
de pesadas portas
madeira de lei entalhada
detalhes em ouro e prata

O poeta compreende
que para os banidos
não fora eterno o paraíso

Na entrada do éden etéreo
pulsam neons coloridos
O  sangue não segue o curso
desenhado pelas fissuras
que ferem a superfície

À hora do crepúsculo
chora o poeta a beleza
do rio tingido de rubro

O sangue coagula
junto ao corpo
feito um cão
zelando seu dono


Contemple a última 
tempestade
Caem os anjos
como gotas de chuva

Não tema 
a silhueta das nuvens
indecisa entre o cinza
e o azul escuro

Respire o hálito
da tormenta
onde pássaros adejam

Soa nas folhas
o vento nos cabelos
Paisagem menos inquieta
que teu espírito



Catedral de Notre Dame


Mínimos gárgulas de ferro
mantinham durante o dia
abertas as pálpebras
das janelas de madeira

Não há lembranças
de olhar através
para o azul celeste

Mas à noite as luzes da rua
transpassavam o esqueleto
das persianas para reescrever 
a treva absoluta

A criança 
ouvia o trânsito
até adormecer
no mesmo cômodo
onde a mulher
de alma lunar
compôs o poema
sobre som e silêncio
único elo com o mundo
quando as órbitas
e o sexo tornaram-se
meros adornos do corpo

O que contempla
seus olhos cegos
e sua vagina
como signos sagrados
carrega por longo tempo
a certeza do crime
A senhora segurando um ramo
raízes envoltas em torrões de terra
Senta-se na exígua sombra
para aguardar o ônibus

Ora, o sol da memória
faz-se tórrido:

já colhestes mudas de flores
imaginando-as na varanda
do apartamento em vasos
improvisados com potes de manteiga

já colhestes mudas de ervas e chás
mesmo sabendo que irá deixá-las
secas e esquecê-las 
até se resumirem
a linhas negras

Para me unir aos antepassados
a avó servira uma sopa
preparada com sangue de pato.
A receita ancestral conduz
por severos invernos
A neve tão branca quanto os ossos
faz-se lâmina sob o sol
fere os olhos que contemplam
as sucessivas guerras
os ciclos da fome

Para me unir aos antepassados
Prostrei-me diante da Virgem Negra
dissolvido em pranto
Compreendi minha própria miséria

Às lembranças da infância
mistura-se a leitura de um poema
em que Ginsberg busca por iluminação
Os tempos cruzam-se sobre mim
desenham um ideograma


Nicanor Parra. Poemas y antipoemas 1954

Autorretrato

Considerem rapazes 
Este sobretudo de frade mendicante:
Sou professor em uma escola obscura,
Perdi a voz ministrando aulas.
(Depois de tudo ou nada
Faço quarenta horas semanais).
O que diz a vocês minha cara esbofeteada?
Verdade que inspira lástima mirar-me!
O que sugerem estes sapatos católicos
Que envelheceram em vão.

Em matéria de olhos, a três metros
Não reconheço minha própria mãe.
O que me sucede? -Nada!
Os arruinei ministrando aulas:
A luz baça, o sol,
A venenosa lua miserável.
E tudo para que!
Para ganhar um pão imperdoável
Duro como a cara do burguês
Com cheiro e sabor de sangue.
Para que nascemos como homens
Se nos dão uma morte de animais!

Pelo excesso de trabalho, as vezes
Vejo formas estranhas flutuarem,
Ouço correrias loucas,
Risadas, conversações criminosas.
Observem estas mãos
As faces pálidas de cadáver, 
Os escassos cabelos que me restam.
Estas negras rugas infernais!
Sem embargo fui igual a vocês,
Jovem, pleno de belos ideais
Sonhei fundindo o cobre
E limando as faces do diamante.
Aqui me encontro hoje
Atrás dessa mesa desconfortável
Embrutecido pelo ritmo
Das quinhentas horas semanais.


Autorretrato


Considerad, muchachos,
Este gabán de fraile mendicante: 
Soy profesor en un liceo obscuro, 
He perdido la voz haciendo clases.
(Después de todo o nada
Hago cuarenta horas semanales). 
¿Qué les dice mi cara abofeteada? 
¡Verdad que inspira lástima mirarme! 
Y qué les sugieren estos zapatos de cura 
Que envejecieron sin arte ni parte.

En materia de ojos, a tres metros 
No reconozco ni a mi propia madre. 
¿Qué me sucede? -¡Nada!
Me los he arruinado haciendo clases: 
La mala luz, el sol,
La venenosa luna miserable.
Y todo ¡para qué!
Para ganar un pan imperdonable
Duro como la cara del burgués
Y con olor y con sabor a sangre.
¡Para qué hemos nacido como hombres
Si nos dan una muerte de animales!

Por el exceso de trabajo, a veces
Veo formas extrañas en el aire,
Oigo carreras locas,
Risas, conversaciones criminales.
Observad estas manos
Y estas mejillas blancas de cadáver,
Estos escasos pelos que me quedan.
¡Estas negras arrugas infernales!
Sin embargo yo fui tal como ustedes,
Joven, lleno de bellos ideales
Soñé fundiendo el cobre
Y limando las caras del diamante:
Aquí me tienen hoy
Detrás de este mesón inconfortable
Embrutecido por el sonsonete
De las quinientas horas semanales.
                                      Fotografia de Viviana Peláez em www.nicanorparra.uchile.cl/

A poesia permanecerá
antiga árvore
cujas raízes beberam
o dilúvio
águas que diluem
o sêmen dos deuses

O espírito do poeta
completa um século
imerso na arquitetura
de carne e ossos

A poesia permanece
frondosa árvore
cujas folhas traduzem
o que o vento ecoa
palavras próximas
ao ritmo puro

Ritmo puro:
ondas desfazendo-se
sobre as areias
de Isla Negra

O século é um ciclo
O círculo perfeito
não simboliza a poesia
Nicanor o atravessa
corpo lunar dividindo-se
entre luz e trevas


Os passos apunhalando
a quietude, o salto
dedilhando quatro
andares.
O encaixe da chave,
o giro, ritmos
anunciam: emerges
de um longo mergulho.

Chegas em casa.
Penso: a poesia resiste
como revelação.

Chega.

Despe-se.
Deixa a calcinha
no chão da sala.

Chaga.

Súbito a lâmina
fere o fruto.
Aroma ilumina.

A calcinha recende.

Acaso
trouxesse da lojinha esotérica
ou do hare krishna
incensos
seriam menos
sacros
que o teu
cheiro
aceso.

A calcinha
e os livros
de poesia
no corpo
do apartamento
calcinam
o silêncio.

Sobrepomos os lábios.
Habito o hálito.
Pomos sangram
sintaxe sem eufemismos.


Recende
em alto e bom som
animais
não sabem
ciciar

o cio.