a mancha
é marca
não mácula

espécie
de escrita
diz da manhã
em que derramas
café-com-leite
e não há tempo
para o zelo
de limpá-lo
do piso de
cerâmica branca
que o dia conclama
com tamanha urgência

entre as margens
irregulares
outra palavra
insinua-se:
nódoa

nega 
a assepsia
absoluta

a nódoa

interroga
a superfície
sobre o signo
noturno
se talvez 
seja o 
eclipse

não há promessa de inferno
que faça enfermas
as luzes do poema

ao indagar
o próprio deus
(qualquer que seja):

é a adaga
menos cruel
por colher
corolas?

a indocilidade é 
inata à natureza
afilada ou herança
da mão humana
que a conduz?

duas são formas que
o silêncio assume:

céu sem nuvens
página em branco



disse de forma
tão triste: saudade
maior da paisagem

fez aves disformes

pairarem desoladas
sobre águas cinzas

brisa

leva
sal

areia

a leve

espuma

sol

colore
nódoas
de óleo

na superfície

dos olhos lê-se:
só na saudade
a paisagem
permanece
paradisíaca





destemor, respeito
reverência, desejo

ante as palavras
convocadas ao poema

sobrevivem ao poeta
eis o que resta: 
seu insone testemunho

sublimam a existência
dos ossos bêbados
das lembranças impiedosas
do coração nômade

ante as palavras
gestos cerimoniosos
sexo pronto
só então, convoque-as
ao poema


sentado em uma praça
lendo Marina Tsvetáieva

contra o corpo sopra
frio ainda suportável

pássaros buscam insetos
entre o gramado úmido 
pelo orvalho noturno

olhos fixos no horizonte
o ilustre busto de bronze 
cada vez mais fosco
e defecado por pombos

a vida segue ao redor e dentro

tivesse ossos tão frágeis
quanto o esqueleto das aves
as mãos vazias os dedos menos 
gelados memória alguma
ou ninguém à espera 

não significaria tanto saber-se
imerso na luz amena da manhã
do dia limítrofe entre outono
e inverno lendo a poesia
de Marina Tsvetáieva


amanhece

já o primeiro

passo lê o chão
espaço fronteiriço
a ser percorrido

todo caminho

que fora escrito
não traduz
o novo dia
sob os pés


mesmo longe vejo
sobre o chão negro
espalhadas as pétalas do ipê

sei: é uma espécie de incêndio
queima-me os pés a inquietação

aproximamo-nos 
de mãos dadas
pela rua quieta

penso: caralho, calaram-se os cães
e as casas dessa cidade distante
nunca terão abrigo 
antiaéreo embora 
não sejamos um povo
de todo pacífico

somos pai e filha 
os passantes
dessa rua vazia
ela diz: o ipê
só dá flor no outono 
e no inverno

nossos passos
inscrevem-se um
tom mais escuro
na pele nas pétalas

avançamos

com a poesia
aprende: 
o curto percurso
é suficiente










































  Tenho muita satisfação em participar da exposição POESIA AGORA realizada no Museu da Língua Portuguesa, com curadoria de Lucas Viriato, coordenação de Yassu Noguchi e Domingos Guimarães. Tive o seguinte poema escolhido pelos organizadores:


Disse para traduzir-se: penumbra.
Tudo que vira o habita.
O garoto nasceu nos trópicos,
a família (quase toda)
trocou neve e ciprestes,
fuga das tropas do führer.

Disse para traduzir-se: penumbra.
O mundo é rumor e texturas.
Olhos devoram tudo.
É preciso, feito animal, migrar
em busca de alimento.
Então pouse a pele, compreenda:
tudo é tátil. Tudo é linguagem,
ouça.

Entoo Dante, o primeiro terceto 
do Inferno:
"No meio do caminho desta vida
desencontrei-me numa selva escura
que do rumo direito vi perdida"

Avô, a poesia traduz
tua cegueira. Teu neto é professor
de literatura. Sinestesia, um exemplo:
Teus olhos silenciaram.






  Soube a hóstia insossa. Palavra inexistente no vocabulário usual de uma criança. Talvez dissera, Não tem gosto! a face disforme pela careta que completa o assombro. O paladar idealizava a doçura. A sacra simbologia do corpo era impossível de ser compreendida. 
  Ainda pode ser lido na memória: era noite, muitas pessoas em pé, horas lentas, lugar mal iluminado, olhou tantos sapatos, década de noventa, com cuidado a mãe colocou em sua boca um pedaço, porque era proibido para quem cria ser pecado. 
  O que pode ser lido hoje: goza os sons das palavras na frase soube a hóstia insossa. A leitura do corpo pela língua, o de carne e osso, agridoce, amargo, denso, áspero, líquido, viscoso. A imagem: sabor tátil. 

Artista Paulo Nazareth.
                          
   A caminho da escola, crianças encontram o cadáver de um cão. Em suas cabeças não soa a palavra: insepulto. Contemplam. Cada olhar colhe um detalhe. Há moscas pretas e verdes. Caninos à mostra. Pelo castanho, talvez o chamavam caramelo.    
   Cutucá-lo com um galho seco, ensina que a morte é tátil. Outra lição a ser compreendida: os mortos permanecem de olhos abertos, não fecham as pálpebras como último gesto. 

Roberto Bolaño


El GRECO

Imagino às vezes um quarto na penumbra
Um microondas             Uma cortina rubra
que cheira a laranjas velhas
Um colchão de casal no chão
Uma jovem de longas pernas sardentas
Boca abaixo com os olhos fechados
Um rapaz de cabelos longos beijando suas costas
O pau duro encaixado entre as nádegas
que se elevam                  E dilatações
Um olor muito forte
Imagino também as imagens
que florescem em seu cérebro e seu nariz
O assombro na lua do apaixonado



Poema traduzido por Gustavo Petter.







Poema constante na obra La Universidad Desconocida, ed. Anagrama.



Segundo Alain Resnais
até o fim da vida
Lovecraft foi vigilante noturno
de um cinema em Providence

Pálido, sustentando um cigarro
entre os lábios, com um metro
e setenta e cinco de altura
leio isto na noite do camping
Estrela do Mar


Según Alain Resnais
hacia el final de su vida
Lovecraft fue vigilante nocturno
de un cine en Providence

Pálido, sosteniendo un cigarrillo
entre os labios, con un metro
setenta y cinco de estatura
leo esto en la noche del camping
Estrella de Mar.






Poema de Roberto Bolaño, traduzido por Gustavo Petter para marcar a data 10/06/2015 em que recebi essa preciosa obra La Univesidad Desconocida.